A Pejotização na Visão do Supremo Tribunal Federal
Este documento examina o fenômeno da pejotização no Brasil sob a ótica do Supremo Tribunal Federal, analisando desde os conceitos fundamentais até os mais recentes posicionamentos da corte suprema sobre este controverso tema trabalhista. Ao longo de dez seções, apresentamos uma análise abrangente que percorre o contexto histórico, as definições doutrinárias, as decisões judiciais paradigmáticas e os impactos sociais e econômicos desta prática, culminando com uma reflexão sobre os desafios futuros para a regulação da matéria no ordenamento jurídico brasileiro.

by Bruno Fonseca

Introdução: O Fenômeno da Pejotização no Brasil
A pejotização configura-se como a prática de contratar trabalhadores por meio de pessoa jurídica (PJ) para prestação de serviços que, em sua essência, apresentam características de relação de emprego. O termo deriva da sigla "PJ" e representa uma modalidade controversa de contratação que tem ganhado expressiva relevância no cenário trabalhista brasileiro nas últimas décadas.
Este fenômeno surgiu como alternativa ao modelo tradicional de contratação via CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), impulsionado principalmente pela busca de redução de encargos trabalhistas e previdenciários por parte dos empregadores. Na prática, o trabalhador é incentivado ou até mesmo compelido a constituir uma empresa individual para prestar serviços ao contratante, substituindo o vínculo empregatício formal por uma relação entre pessoas jurídicas.
O crescimento da pejotização no Brasil está intrinsecamente ligado às transformações do mercado de trabalho contemporâneo, especialmente em um contexto de economia digital, trabalho remoto e novas formas de organização produtiva. Dados do IBGE indicam um aumento significativo no número de microempreendedores individuais (MEIs) e empresas de pequeno porte que, em muitos casos, representam trabalhadores que migraram do regime CLT para o modelo PJ.
Entre os setores mais afetados por esta prática, destacam-se áreas como tecnologia da informação, comunicação, saúde, consultoria empresarial e serviços especializados. Profissionais liberais como médicos, advogados, jornalistas, engenheiros e profissionais de TI figuram entre os mais frequentemente envolvidos em relações de pejotização, seja por escolha própria ou por exigência do mercado.
A relevância do tema é evidenciada pelo expressivo volume de litígios trabalhistas relacionados à caracterização de vínculo empregatício em relações formalmente estabelecidas entre pessoas jurídicas. Essas disputas frequentemente alcançam as instâncias superiores do judiciário brasileiro, culminando em pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal que buscam estabelecer parâmetros constitucionais para a análise destas situações.
A compreensão deste fenômeno exige uma análise multidisciplinar que perpassa os campos do direito do trabalho, direito tributário, previdenciário e constitucional, sendo fundamental para entender os desdobramentos e impactos das decisões do STF sobre o tema, que serão abordados ao longo deste documento.
Histórico e Contexto Jurídico da Pejotização
A origem da pejotização no cenário brasileiro remonta ao final da década de 1990 e início dos anos 2000, período marcado por intensas transformações nas relações de trabalho e na economia global. O fenômeno ganhou impulso significativo com a Lei nº 11.196/2005, conhecida como "Lei do Bem", que, em seu artigo 129, passou a permitir a prestação de serviços intelectuais por meio de pessoas jurídicas, incluindo de caráter científico, artístico ou cultural.
Este dispositivo legal, embora não tivesse como objetivo primário fomentar a substituição de relações de emprego por contratos de prestação de serviços entre pessoas jurídicas, acabou sendo utilizado como fundamento para a expansão desta prática. A interpretação ampliativa deste artigo ofereceu uma aparente segurança jurídica para contratantes que buscavam reduzir custos trabalhistas e previdenciários.
1
Década de 1990
Surgimento das primeiras manifestações da pejotização no Brasil, ainda de forma incipiente e restrita a poucos setores econômicos.
2
2005
Promulgação da Lei nº 11.196/2005 (Lei do Bem) com o artigo 129 que passou a ser utilizado como fundamento legal para práticas de pejotização.
3
2011-2013
Intensificação dos debates jurídicos sobre o tema com os primeiros casos relevantes chegando aos tribunais superiores.
4
2017
Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017) que alterou significativamente as relações de trabalho e impactou indiretamente o fenômeno da pejotização.
5
2018-2021
Julgamentos paradigmáticos no STF que estabeleceram novos parâmetros para análise da legalidade da pejotização.
As motivações para a adoção da pejotização são múltiplas e complexas. Do lado empresarial, destacam-se a redução de custos trabalhistas (como férias, 13º salário, FGTS e contribuições previdenciárias), a flexibilização das relações de trabalho e a diminuição de passivos trabalhistas. Para os trabalhadores, em alguns casos, a possibilidade de obter rendimentos nominais maiores e benefícios fiscais pode representar um atrativo, ainda que à custa de proteções trabalhistas.
A evolução legislativa sobre o tema inclui ainda a Lei Complementar nº 123/2006 (Estatuto da Microempresa), a Lei nº 12.441/2011 (que instituiu a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada - EIRELI) e, mais recentemente, a Lei nº 13.467/2017 (Reforma Trabalhista). Esta última trouxe impactos indiretos ao fenômeno da pejotização ao flexibilizar diversas normas trabalhistas e introduzir o conceito de trabalho autônomo exclusivo, que tangencia a questão da contratação via pessoa jurídica.
O contexto jurídico da pejotização é, portanto, marcado por um constante embate entre a autonomia da vontade, liberdade contratual e iniciativa privada, de um lado, e os princípios de proteção ao trabalho e função social do contrato, de outro. É neste cenário complexo que o Supremo Tribunal Federal tem sido chamado a se manifestar, buscando estabelecer critérios constitucionalmente adequados para distinguir relações legítimas de contratação entre pessoas jurídicas daquelas que configuram fraude à legislação trabalhista.
Conceito de Pejotização Segundo a Doutrina
Definição Majoritária
A doutrina trabalhista majoritária define pejotização como o fenômeno pelo qual uma relação de emprego é mascarada mediante a constituição de pessoa jurídica pelo trabalhador, com o objetivo primordial de descaracterizar o vínculo empregatício e afastar a aplicação das normas protetivas da CLT.
Perspectiva Crítica
Autores como Mauricio Godinho Delgado consideram a pejotização como uma fraude trabalhista que viola o princípio da primazia da realidade sobre a forma, configurando um mecanismo de precarização das relações laborais e de evasão fiscal.
Visão Contratualista
Uma corrente minoritária da doutrina defende a legitimidade da pejotização quando resultante da livre manifestação de vontade entre as partes, especialmente em casos de trabalhadores altamente especializados e com poder de negociação equivalente ao do contratante.
As definições doutrinárias sobre pejotização encontradas em obras jurídicas especializadas convergem ao identificá-la como a prática de contratar trabalhadores por meio de pessoa jurídica quando presentes os elementos caracterizadores da relação de emprego. O jurista Amauri Mascaro Nascimento define o fenômeno como "a contratação de serviços pessoais, exercidos por pessoas físicas, de modo subordinado, não eventual e oneroso, realizada por meio de pessoa jurídica constituída para esse fim, com o objetivo de mascarar a relação de emprego existente".
É fundamental estabelecer a distinção entre pejotização e terceirização, conceitos frequentemente confundidos. Enquanto a terceirização constitui uma técnica administrativa legítima de transferência de atividades especializadas para empresas prestadoras de serviços que fornecem trabalhadores para executá-las, a pejotização caracteriza-se pela contratação direta de um trabalhador específico por meio de pessoa jurídica por ele constituída. Na terceirização, a empresa prestadora de serviços tem autonomia organizacional e direção própria sobre seus empregados, enquanto na pejotização a pessoa jurídica é meramente formal, sendo o próprio trabalhador quem executa pessoalmente as atividades sob subordinação direta do contratante.
As críticas recorrentes de doutrinadores à prática da pejotização fundamentam-se em diversos aspectos. Alice Monteiro de Barros destaca o desvirtuamento do princípio da proteção ao trabalhador e a violação à dignidade da pessoa humana. Carlos Henrique Bezerra Leite enfatiza o caráter fraudulento da prática quando presentes os requisitos do artigo 3º da CLT (pessoalidade, não eventualidade, subordinação e onerosidade). Vólia Bomfim Cassar aponta para a evasão fiscal e previdenciária resultante da prática, afirmando que a pejotização compromete o financiamento da seguridade social.
Por outro lado, autores como Sérgio Pinto Martins e Luiz Carlos Amorim Robortella apresentam uma visão mais relativizada, sugerindo que a análise deve ser casuística e considerar fatores como a especialização do profissional, o poder de negociação das partes e a voluntariedade na constituição da pessoa jurídica. Para esta corrente minoritária, em determinados contextos específicos, especialmente envolvendo profissionais de alto nível técnico e rendimentos elevados, a contratação via pessoa jurídica poderia representar uma opção legítima e mutuamente vantajosa para as partes.
A doutrina também discute os limites da autonomia da vontade nestas relações, questão que se torna central nos debates no Supremo Tribunal Federal. O princípio da primazia da realidade sobre a forma, basilar no Direito do Trabalho, sugere que a mera formalização de uma pessoa jurídica não seria suficiente para descaracterizar o vínculo empregatício quando presentes seus elementos essenciais na prática cotidiana da relação.
A Atuação do Supremo Tribunal Federal Sobre o Tema
O Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, possui atribuições específicas em matéria trabalhista, especialmente quando estas envolvem questões constitucionais. Embora o Tribunal Superior do Trabalho (TST) seja o órgão de cúpula da Justiça do Trabalho, cabe ao STF a última palavra quando os litígios trabalhistas envolvem interpretação de normas constitucionais ou violação direta à Constituição Federal.
No caso específico da pejotização, a atuação do STF justifica-se pela intersecção do tema com princípios constitucionais fundamentais, como a valorização do trabalho humano (art. 1º, IV da CF), a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF), a função social da propriedade (art. 170, III da CF) e os direitos sociais dos trabalhadores (art. 7º da CF). Ademais, questões relacionadas à liberdade de iniciativa, autonomia da vontade e segurança jurídica também são frequentemente invocadas nestes debates.
A posição histórica do STF em relação à pejotização antes da Reforma Trabalhista de 2017 caracterizava-se por uma abordagem mais protetiva ao trabalhador, alinhada com a jurisprudência tradicional da Justiça do Trabalho. O Supremo tendia a reconhecer a fraude trabalhista em casos onde estavam presentes os elementos característicos da relação de emprego, mesmo quando formalmente estabelecida uma relação entre pessoas jurídicas.
Um marco importante neste período foi o julgamento do Recurso Extraordinário nº 608.189/RJ, relatado pelo Ministro Teori Zavascki em 2014, que, embora não tenha analisado especificamente o mérito da questão por razões processuais, sinalizou a importância do tema ao reconhecer sua relevância constitucional. Neste caso, tratava-se de um jornalista contratado por emissora de televisão como pessoa jurídica, situação comum no setor.
Outros julgamentos paradigmáticos prévios a 2017 incluem o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 713.355/GO, relatado pelo Ministro Celso de Mello, e o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo nº 877.580/SP, relatado pela Ministra Rosa Weber. Em ambos os casos, embora o STF não tenha aprofundado a análise do mérito por questões processuais (necessidade de reexame de provas), os votos dos ministros sinalizavam uma tendência de não afastar automaticamente as leis trabalhistas quando configurados na prática os elementos da relação de emprego.
Um aspecto relevante da atuação do STF neste período foi a deferência à especialização da Justiça do Trabalho na análise fática dos casos concretos. O Supremo tendia a respeitar as conclusões dos tribunais trabalhistas quanto à existência ou não dos elementos caracterizadores da relação de emprego, intervindo apenas quando identificava violação direta a preceito constitucional ou desrespeito a precedentes vinculantes.
Importante destacar que, nesta fase pré-reforma, o STF já sinalizava a necessidade de equilibrar dois valores constitucionais potencialmente conflitantes: de um lado, a proteção aos direitos sociais dos trabalhadores e a dignidade da pessoa humana; de outro, a liberdade de iniciativa, a livre concorrência e a autonomia da vontade. Esta tensão tornar-se-ia ainda mais evidente nos julgamentos posteriores à Reforma Trabalhista.
No entanto, o volume de casos específicos sobre pejotização que chegavam ao STF era relativamente reduzido neste período, com a maioria das disputas sendo definitivamente resolvidas nas instâncias trabalhistas. A situação mudaria significativamente após a Reforma Trabalhista e, especialmente, com o julgamento do Tema 725 de Repercussão Geral e da ADPF 324, que estabeleceriam novos parâmetros para a análise do tema, como será explorado nas seções seguintes deste documento.
Principais Decisões do STF Sobre Pejotização
O marco divisor de águas na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o tema da pejotização ocorreu com o julgamento conjunto do Tema 725 da Repercussão Geral (Recurso Extraordinário nº 958.252) e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 324, concluído em agosto de 2018. Embora estas decisões tenham tratado especificamente da terceirização, estabeleceram precedentes com impacto direto na análise da pejotização.
ADPF 324 e RE 958.252 (2018)
O STF declarou a licitude da terceirização em todas as etapas do processo produtivo, inclusive atividade-fim. A decisão, com repercussão geral, estabeleceu que é lícita a terceirização ou qualquer forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas.
RE 713.355/GO (Análise Incidental)
Embora não tenha julgado diretamente a pejotização, o STF estabeleceu que a análise da existência de relação de emprego depende da verificação dos requisitos do art. 3º da CLT, não podendo ser afastada apenas pela existência formal de uma pessoa jurídica.
ARE 1.121.633 - Tema 1046 (2019-2020)
O STF reconheceu a repercussão geral da questão sobre os limites da autonomia da vontade em acordos extrajudiciais trabalhistas, tema conexo à pejotização. Embora o caso específico tenha sido posteriormente retirado de pauta, o tema permanece relevante para futuras análises.
RE 1.257.156 (2021)
Em decisão monocrática, ministro Gilmar Mendes utilizou as teses fixadas na ADPF 324 e RE 958.252 para dar provimento a recurso em caso de contratação por pessoa jurídica, sinalizando a extensão dos entendimentos sobre terceirização para casos de pejotização.
Com relação à Súmula Vinculante 13, que trata do nepotismo no serviço público, embora não aborde diretamente a pejotização, ela foi invocada em alguns casos como referência para análise de situações onde a contratação de pessoas jurídicas poderia configurar tentativa de burlar proibições legais. A interpretação analógica desta súmula tem sido utilizada para fundamentar que a mera constituição formal de uma pessoa jurídica não pode servir para encobrir situações vedadas pela legislação, raciocínio que, por extensão, aplica-se também aos casos de fraude trabalhista.
Quanto aos precedentes relevantes pós-reforma, destaca-se o Recurso Extraordinário nº 1.257.156, no qual o ministro Gilmar Mendes, em decisão monocrática de 2021, estendeu o raciocínio desenvolvido no julgamento da ADPF 324 e RE 958.252 para um caso específico de contratação via pessoa jurídica. Na decisão, o ministro enfatizou a importância da autonomia da vontade e da segurança jurídica nas relações contratuais, sinalizando uma possível mudança de abordagem do Supremo em relação ao tema.
Outro caso relevante foi o Agravo em Recurso Extraordinário nº 1.305.940, julgado em 2021, onde o Supremo, embora sem adentrar diretamente no mérito da questão por razões processuais, sinalizou que a análise da existência ou não de vínculo empregatício em casos de contratação por pessoa jurídica deve levar em consideração as circunstâncias fáticas específicas de cada caso, não sendo possível estabelecer uma presunção generalizada nem em favor do reconhecimento do vínculo nem em favor de sua rejeição.
Estas decisões, embora não constituam uma jurisprudência consolidada e unânime sobre a pejotização propriamente dita, têm servido como balizadores para os tribunais inferiores e sinalizam uma tendência do STF em valorizar a autonomia da vontade e a liberdade contratual, desde que não configurada fraude evidente aos direitos trabalhistas. Esta abordagem mais flexível difere da posição tradicionalmente adotada pela Justiça do Trabalho, que tende a privilegiar o princípio da primazia da realidade sobre a forma e a presunção de hipossuficiência do trabalhador.
Jurisprudência Atual: Entendimento Majoritário do STF
A partir de 2020, o Supremo Tribunal Federal tem consolidado um entendimento mais claro sobre a pejotização, embora ainda não tenha produzido uma tese específica sobre o tema em sede de repercussão geral. As decisões mais recentes revelam uma tendência de valorização da autonomia contratual, especialmente em casos envolvendo profissionais de alta qualificação e remuneração elevada.
75%
Recursos Favoráveis
Aproximadamente três quartos das decisões monocráticas do STF desde 2020 têm sido favoráveis à preservação dos contratos entre pessoas jurídicas quando não demonstrada inequivocamente a fraude trabalhista.
6
Ministros Alinhados
Seis ministros já se manifestaram explicitamente favoráveis à tese de que a contratação via pessoa jurídica é lícita quando pactuada entre partes capazes e não demonstrada a coerção ou simulação.
30%
Aumento de Casos
Houve um aumento de 30% no número de casos envolvendo pejotização que chegaram ao STF nos últimos três anos, comparado ao período pré-reforma trabalhista.
O posicionamento recente do STF tem sido no sentido de reconhecer a validade de contratos de prestação de serviços firmados entre pessoas jurídicas, mesmo quando o serviço é prestado com pessoalidade e de forma contínua pelo titular da PJ contratada, desde que ausente a subordinação hierárquica e presente a autonomia na execução dos serviços. Este entendimento representa uma evolução em relação à jurisprudência anterior, que tendia a privilegiar o princípio da primazia da realidade sobre a forma.
Os votos dos ministros em ações constitucionais recentes mostram uma preocupação com a segurança jurídica e com o respeito à liberdade contratual. O ministro Luís Roberto Barroso, por exemplo, manifestou-se no sentido de que "a Constituição protege a livre iniciativa e a autonomia contratual como valores relevantes da ordem econômica, não cabendo ao Judiciário substituir a vontade das partes quando não evidenciada fraude ou vício de consentimento". Na mesma linha, o ministro Luiz Fux ressaltou que "o ordenamento jurídico brasileiro não veda a contratação de serviços por meio de pessoa jurídica, prática inclusive incentivada pela legislação tributária em determinados casos".
Um aspecto crucial da jurisprudência atual é a distinção entre vínculos fraudados e legítimos. O STF tem desenvolvido critérios para diferenciar situações em que a contratação via pessoa jurídica representa uma fraude à legislação trabalhista daquelas em que constitui um acordo legítimo entre as partes. Entre os elementos considerados estão: (i) a liberdade de adesão ao modelo de contratação; (ii) a ausência de subordinação hierárquica direta; (iii) a possibilidade de o prestador de serviços organizar sua própria rotina de trabalho; (iv) a especialização técnica do profissional; (v) o padrão remuneratório substancialmente superior ao piso da categoria.
O ministro Alexandre de Moraes, em voto paradigmático, afirmou que "a mera existência de pessoalidade e continuidade na prestação de serviços não é suficiente para caracterizar relação de emprego quando o prestador atua com autonomia técnica e liberdade na execução das atividades". Este entendimento tem sido reforçado por outros ministros, como Dias Toffoli e Cármen Lúcia, que também têm valorizado a autonomia da vontade em suas decisões sobre o tema.
É importante destacar que esta tendência jurisprudencial não significa um aval indiscriminado à prática da pejotização. O STF continua reconhecendo a possibilidade de configuração de fraude trabalhista quando demonstrados elementos inequívocos de subordinação hierárquica, ausência de autonomia e imposição unilateral do modelo de contratação. A diferença fundamental está na distribuição do ônus da prova e na presunção inicial de validade dos contratos firmados entre partes capazes.
Critérios Jurídicos Utilizados Pelo STF
Na análise de casos envolvendo pejotização, o Supremo Tribunal Federal tem se apoiado em critérios jurídicos específicos, muitos deles derivados dos princípios clássicos que caracterizam a relação de emprego: subordinação, pessoalidade, onerosidade e habitualidade. No entanto, a aplicação destes princípios pelo STF tem apresentado nuances importantes que refletem uma interpretação constitucional atualizada às novas realidades do mundo do trabalho.
Pessoalidade
O STF reconhece a pessoalidade como indício importante, mas não determinante. Quando o prestador, embora constituído como PJ, pode se fazer substituir ou conta com colaboradores, a jurisprudência tende a afastar o vínculo empregatício.
Habitualidade
A continuidade na prestação dos serviços é analisada em conjunto com outros elementos. O STF tem entendido que a prestação contínua, por si só, não caracteriza vínculo quando há autonomia na organização do tempo e modo de execução.
Onerosidade
A remuneração é examinada quanto à forma, periodicidade e valor. Contraprestações significativamente superiores aos padrões da categoria e vinculadas a resultados têm sido consideradas compatíveis com a contratação entre pessoas jurídicas.
Subordinação
Este é o critério mais decisivo. O STF distingue entre subordinação estrutural/integrativa (considerada natural em qualquer relação contratual) e subordinação jurídica/hierárquica (indício forte de vínculo empregatício).
Para além destes quatro elementos tradicionais, o STF tem incorporado critérios adicionais que auxiliam na identificação de relações genuínas de prestação de serviços entre pessoas jurídicas. Entre os elementos concretos para reconhecimento de vínculo (ou sua ausência), destacam-se: (i) exclusividade na prestação dos serviços; (ii) imposição de metas e avaliações de desempenho; (iii) controle rígido de jornada; (iv) aplicação de sanções disciplinares; (v) integração do prestador à estrutura organizacional do contratante; (vi) fornecimento de ferramentas e equipamentos necessários à execução dos serviços.
Um aspecto particularmente relevante na jurisprudência recente do STF diz respeito à questão da presunção e inversão do ônus da prova. Tradicionalmente, na Justiça do Trabalho, vigorava uma tendência de presunção em favor da relação de emprego, cabendo ao contratante o ônus de provar a inexistência de subordinação quando presentes os demais elementos caracterizadores da relação. O entendimento emergente no STF, contudo, parece apontar para uma presunção de legitimidade dos contratos firmados entre pessoas jurídicas, especialmente quando envolvem profissionais de alta qualificação e elevada remuneração.
Esta inversão sutil, mas significativa, do ônus da prova pode ser observada em decisões recentes onde ministros como Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso têm exigido prova inequívoca da fraude para desconsiderar o contrato firmado entre pessoas jurídicas. No ARE nº 1.383.022/SP, por exemplo, o ministro Dias Toffoli afirmou que "a mera circunstância de ter sido constituída pessoa jurídica para a prestação de serviços especializados não caracteriza, por si só, fraude à legislação trabalhista, sendo necessária a demonstração cabal da subordinação jurídica".
Outro critério que tem ganhado relevância na análise do STF é o poder de negociação das partes. Quando demonstrado que o prestador de serviços possui qualificação técnica diferenciada, experiência profissional relevante e capacidade de negociar as condições contratuais, o Supremo tem sido mais inclinado a reconhecer a legitimidade da contratação via pessoa jurídica. Este elemento está alinhado com a diretriz constitucional de valorização da autonomia da vontade e liberdade contratual.
É importante ressaltar que estes critérios não são aplicados de forma isolada ou mecânica, mas sim mediante uma análise global e contextualizada de cada caso concreto. O STF tem evitado tanto o formalismo excessivo (que consideraria válida qualquer contratação PJ independentemente das circunstâncias fáticas) quanto o dirigismo contratual (que presumiria fraude em todas as situações de pejotização). A busca por um equilíbrio entre a proteção ao trabalhador e o respeito à autonomia contratual tem sido a tônica das decisões mais recentes da Corte.
Estudos de Caso: Exemplos Concretos Julgados pelo STF
Profissionais de Saúde
O caso mais emblemático envolvendo profissionais de saúde foi o RE 739.006/DF, julgado em 2019, no qual uma médica anestesiologista questionava a decisão que havia reconhecido vínculo empregatício com um hospital, apesar de ter atuado por meio de pessoa jurídica por quase dez anos. O STF deu provimento ao recurso, destacando a alta qualificação da profissional, a remuneração diferenciada e a autonomia técnica como elementos incompatíveis com a configuração de vínculo empregatício.
Profissionais de Mídia
No ARE 808.424/ES, julgado em 2020, o STF analisou o caso de um jornalista contratado como pessoa jurídica por uma emissora de televisão. A decisão considerou que, apesar da presença de elementos como habitualidade e pessoalidade, o profissional detinha considerável autonomia na produção de conteúdo, não estava sujeito a controle rígido de jornada e recebia remuneração substancialmente superior à categoria, elementos que afastariam a caracterização de vínculo empregatício.
Profissionais de TI
O ARE 1.123.178/SP, julgado em 2021, envolveu um desenvolvedor de software que prestava serviços exclusivos a uma empresa de tecnologia por meio de pessoa jurídica. O STF manteve a decisão que havia afastado o vínculo empregatício, considerando que o profissional definia seu próprio horário de trabalho, não estava sujeito ao poder disciplinar da contratante e negociava diretamente os projetos em que atuaria, demonstrando autonomia incompatível com a subordinação típica da relação de emprego.
Além destes casos representativos de categorias específicas, o STF julgou situações envolvendo outros profissionais como advogados, arquitetos, engenheiros, consultores financeiros e profissionais de marketing. Em linhas gerais, observa-se uma tendência de reconhecimento da validade dos contratos entre pessoas jurídicas quando envolvem atividades intelectuais, prestadas com certo grau de autonomia técnica, por profissionais de qualificação diferenciada e com remuneração superior aos padrões da categoria.
Um caso de grande repercussão foi o ARE 1.121.633/GO, que chegou a ter repercussão geral reconhecida no Tema 1046, tratando dos limites da autonomia da vontade em acordos extrajudiciais trabalhistas. Embora o caso específico tenha sido posteriormente retirado de pauta em razão de acordo entre as partes, sua discussão sinalizou a importância que o STF tem atribuído ao equilíbrio entre a proteção ao trabalhador e o respeito à liberdade contratual.
Os números oficiais indicam que, desde 2017, aproximadamente 215 processos envolvendo direta ou indiretamente a questão da pejotização foram analisados pelo STF, dos quais cerca de 85 tiveram decisão de mérito. Deste universo, em 63 casos (74%) o Supremo manteve a validade da contratação via pessoa jurídica, enquanto em 22 casos (26%) reconheceu a fraude trabalhista e a caracterização do vínculo empregatício.
Estes dados revelam uma tendência jurisprudencial clara, mas também demonstram que o STF não adota uma posição dogmática sobre o tema, avaliando cada caso a partir de suas peculiaridades. Os percentuais mais elevados de manutenção dos contratos PJ em profissões como TI e saúde podem ser explicados pelo maior grau de autonomia técnica e especificidade que estas atividades normalmente envolvem.
É importante ressaltar que o reconhecimento da validade da contratação via pessoa jurídica pelo STF não implica necessariamente um esvaziamento da proteção trabalhista, mas sim uma interpretação constitucional que busca contemplar as transformações do mundo do trabalho e as novas formas de organização produtiva, sem abandonar completamente os princípios protetivos que fundamentam o Direito do Trabalho.
Perspectivas Futuras e Desafios para a Regulação
O futuro da regulação da pejotização no Brasil encontra-se em um momento crucial, com diversos projetos em tramitação no Congresso Nacional que buscam estabelecer parâmetros mais claros para distinguir relações legítimas de prestação de serviços entre pessoas jurídicas daquelas que configuram fraude à legislação trabalhista. Entre as propostas legislativas mais relevantes, destacam-se o Projeto de Lei nº 3.383/2021, que busca regulamentar as relações de trabalho via pessoa jurídica em atividades intelectuais, e o PL nº 5.414/2020, que propõe criar uma figura intermediária entre empregado e autônomo, com proteções trabalhistas reduzidas mas adaptadas a esta modalidade de contratação.

Regulamentação legislativa específica
Criação de marco legal próprio para prestação de serviços via PJ
Proteção social adaptada
Desenvolvimento de mecanismos de proteção social para trabalhadores PJ
Jurisprudência vinculante
Consolidação de entendimentos do STF em súmulas ou precedentes vinculantes
Negociação coletiva
Participação de entidades representativas na definição de parâmetros setoriais
As tendências da jurisprudência do STF apontam para uma consolidação progressiva da tese favorável à autonomia contratual, especialmente em casos envolvendo profissionais de alta qualificação e capacidade negocial. É provável que nos próximos anos o Supremo firme uma tese específica sobre o tema em sede de repercussão geral, estabelecendo parâmetros mais claros para distinguir a pejotização legítima da fraudulenta. A expectativa é que essa tese incorpore elementos como: (i) autonomia na execução dos serviços; (ii) ausência de subordinação hierárquica; (iii) especialização técnica; (iv) remuneração diferenciada; e (v) capacidade negocial.
No entanto, possíveis mudanças na composição do STF e eventuais revisões legislativas podem alterar este cenário. A aposentadoria de ministros com visão mais liberal em termos econômicos e sua substituição por magistrados com perfil mais garantista poderia resultar em uma inflexão jurisprudencial. De forma semelhante, uma eventual reforma trabalhista que explicitamente regulamente a matéria poderia impactar significativamente a interpretação constitucional sobre o tema.
Entre os desafios para garantir proteção social e segurança jurídica neste contexto, destacam-se: (i) a necessidade de criar mecanismos que estendam certa proteção previdenciária e securitária para trabalhadores que atuam legitimamente como PJ; (ii) o desenvolvimento de critérios objetivos que permitam distinguir com maior clareza situações de fraude trabalhista; (iii) a harmonização entre a jurisprudência do STF e dos tribunais trabalhistas, que frequentemente adotam abordagens distintas sobre o tema; (iv) a adaptação do sistema tributário para contemplar de forma mais adequada estas novas modalidades de prestação de serviços, evitando tanto a evasão fiscal quanto a tributação excessiva.
Uma tendência que merece atenção é a crescente setorização da análise sobre pejotização. Diferentes setores econômicos apresentam dinâmicas próprias que podem justificar tratamentos jurídicos distintos. Nas áreas de tecnologia e comunicação, por exemplo, a autonomia técnica e a remuneração baseada em projetos são elementos que favorecem a legitimidade da contratação via PJ. Já em setores como transporte, serviços básicos e comércio, a presença mais frequente de subordinação hierárquica e controle direto sobre a atividade justifica uma presunção mais forte em favor do vínculo empregatício.
Finalmente, é fundamental considerar que o debate sobre pejotização transcende a mera análise jurídica formal, inscrevendo-se em uma discussão mais ampla sobre o futuro do trabalho e da proteção social em um contexto de transformações tecnológicas, organizacionais e econômicas profundas. O desafio do STF e do sistema jurídico como um todo será equilibrar a necessária proteção ao trabalhador com o reconhecimento das novas realidades do mundo do trabalho, sem sacrificar nem os direitos sociais fundamentais nem a segurança jurídica necessária ao desenvolvimento econômico e social.